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Crítica – A apropriação poética do Circo Teatro Palombar – Valmir Santos

Por Valmir Santos

 

Ao prefaciar o livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil (2007), da pesquisadora Erminia Silva, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu sublinha o raciocínio da autora “de que o circo, muito além do espetáculo, muito além da imagem desqualificadora de ‘melodrama, acrobacia e palhaço’ que lhe tem sido atribuída, esconde um processo de formação artística para o qual devíamos olhar mais atentamente”.

Essa percepção é exemplar no caso do segundo espetáculo do Circo Teatro Palombar, A novidade é milenar, sob texto e direção de Adriano Mauriz. Aos cinco anos de trajetória, o grupo de iniciantes de Cidade Tiradentes, bairro da zona leste de São Paulo, expressa segurança técnica conjunta para navegar pelas potencialidades estéticas e poéticas da cena.

A imersão dessa juventude na cultura circense é reconhecível por meio da gestualidade (pantomima), da performance física (notadamente o número da báscula, a balança com base horizontal equilibrada no jogo do peso corporal) e da comicidade nuançada (como na figura pulverizada do palhaço, a perna de pau, o monociclo).

O espetáculo é ágil na superposição de linguagens. Há contaminações no campo da música (execução de instrumentos de percussão e sopros), do teatro de rua (a habilidade para interagir na roda/picadeiro capturando cada olhar da plateia, influência direta do Grupo Pombas Urbanas, como que padrinho que dá asas ao Palombar) e do teatro de formas animadas na manipulação de boneco, numa breve citação.

A desenvoltura reflete a importância do trabalho continuado que boa parte do elenco realiza desde 2012, fruto do projeto de circo social desenvolvido pelo Instituto Pombas, braço do grupo de mesmo nome.

Também à frente da primeira criação do Palombar, Uma arriscada trama de picadeiro e asfalto (2013), Mauriz ousa passos mais firmes em termos formais e temáticos ao conviver com essa novíssima geração circense que brota da periferia leste paulistana. O ator é cofundador do Pombas Urbanas (1989). Tornou-se nos últimos anos um praticante e pesquisador atento às artes do circo e, em especial, ao ofício do palhaço, retroalimentando sua bagagem de 27 anos de dedicação ao palco, aos espaços ao ar livre e aos espaços não convencionais.

Um dos achados está na eleição do melodrama como eixo da história narrada. Tido como um gênero menor, sempre encontrou guarida sob a lona devido à forte identificação com a sensibilidade popular. Nascido no âmbito da Revolução Francesa, no século 18, o melodrama encontrou no tablado à italiana (frontal) ou mesmo fora dele, nas feiras, estreita relação com a democratização da arte. Nem sempre por linhas tortas, ressalve-se, para aplacar o preconceito que ainda gruda em seu calcanhar. A aura sentimental do que se acredita moralizante contrapõe-se ao mal. Não à toa o maniqueísmo atinge as massas em cheio, mostra a formação televisiva da maioria dos brasileiros.

Pois a trupe do Circo Teatro Palombar faz do gênero melodramático a quintessência de A novidade é milenar ao conjugar entretenimento e senso crítico nas relações interpessoais, consanguíneas, de patrão e empregado e de artista e sociedade. O diálogo com essa tradição tem tudo a ver com o contexto de surgimento e continuidade de um trabalho de circo-teatro na comunidade de Cidade Tiradentes.

Os onze integrantes do elenco mais a presença de um contrarregra transmitem habilidade e destreza. É notável a apropriação poética dos números circenses e a preparação do coletivo para desempenhar as passagens musicais – a musicalidade pulsa o tempo todo por meio de instrumentos e percussões a cargo dos próprios artistas da cena. Os semblantes e as posturas corporais, por sua vez, já transcendem o nervosismo natural daquelas primeiras incursões em cena, quando das aulas para o curso livre e dos treinamentos posteriores que aos poucos deram liga ao grupo. Pululam agora a espinha ereta e a altivez. A dignidade, em suma.

A trama mobiliza sentimentos cambiantes de ódio, de vingança, de piedade, de ternura e até de melancolia (há que ter uma pitada dela fazer jus ao melodrama e à natureza demasiado humana). Ao retratar as peripécias da família Pudinni o roteiro correlaciona bastidores da vida mambembe. Não só as idiossincrasias, as afeições e conflitos, mas também o campo de resistência permanente para os artistas a ela devotados. Essa arte secular cujo sopro depende da eficácia e da entrega de cada sujeito envolvido com tamanha aventura diuturna. Essa arte na qual os atos elementares de respirar ou de piscar o olho podem ser determinantes no sucesso da exibição de um número.

Há uma dança dessas figuras carismáticas (mesmo os vilões) com cada um dos artistas que as compõem. Em comum, eles conhecem de perto a sina de ver-se à margem da sociedade e ao mesmo tempo instaurar a centelha no olho de crianças e adultos. Isso tudo em meio à luta dos profissionais e dos amadores do circo pelo reconhecimento de políticas públicas. A perseverança em reafirmar a condição cidadã e o direito a existir têm a ver com o contexto da sessão acompanhada no Centro Cultural Arte em Construção, a casa que serviu como formação e plataforma para o Circo Teatro Palombar voar longe. Ou seja, a transformação por meio da arte materializa-se de modo incomensurável. A medida do sonho, aqui, se faz infinita com muito suor.

Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador de teatro. Fez parte da formação inicial do Grupo Pombas Urbanas na fase amadora.

3 comentários

  1. Valmir, seu texto sempre chegando até a mim de uma maneira distinta de outros “críticos” de espetáculos circenses, em particular quando se trata de circo-teatro. Grata por usar de referência inicial o prefácio do Luís Alberto de Abreu, ele é mágico com as palavras, e como você não fica na superfície “simples” ao escrever sobre as artes do circo.
    Parabéns Circo Teatro Palombar, parabéns Grupo Pombas Urbanas, ainda vou ver este espetáculo.

  2. Essa galera e demais…..eu tive o prazer de assistilos em alguna lugares… sao MUTANTES DA QUEBRADA kkkk eu indico eles ao OSCAR.

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